28/9 — 11/10/20
— SEGUIR ADIANTE SEM PERDAS,
PARTE 2 — A VIDA DO FÓSFORO
Segunda parte da coleção Seguir Adiante Sem Perdas, as coisas se movem pela cultura secular ao encontro das bordas: até um muro, para o limite ou a superfície da tela, de uma palavra a outra, no vão entre idiomas distintos, na turbidez entre duas claridades, na discordância entre função e forma. O andarilho, antes carente de ver no espelho o guerreiro ou o diplomata, lança-se sobre os reflexos com corpo chamuscado. O signo da vontade devora o arquivo e extenua a literatura, atravessando o paraíso do projeto para vasculhar um umbral de retornos, onde a chama que origina, mobiliza e mostra ora lampeja, ora queima, ora incendeia.
Em alguns dos filmes, os fins dos materiais são francamente dissimulados, para que se descubra uma nova beleza imanente, filmada, e uma outra mobilização para a multidão. Ao fazer nova montagem de cinepropaganda peronista para público infantojuvenil, O dia que pôde ser, de Lorena Moriconi e Santiago Loza, e Melancolia, de Albertina Carri, rearrumam gestos inscritos tendo a ficção do destino como método e como tema. Os filmes integram o projeto Archivos Intervenidos: Cine Escuela, organizado pelo Museo del Cine Pablo Ducrós Hicken num princípio museológico que desbrava, na forja, a crítica.
Em outros casos, é franco o confronto entre corpo e proliferação de léxicos, e a mediação adquire a envergadura de um rito. Em A Hárpia e Barítono amador: a estreia dele, The Alabama Song, Sylvia Toy se dirige para a câmera em reencarnações, oblíquas e eloquentes, de mitologias diversas, do misticismo Grego à conversa moderna de Brecht, ou ainda a popular, no cancioneiro nacional. É amostragem da abundante produção da artista, cuja alcunha Sylviatoyindustries oferece fábrica de videodelírios e, num chroma key doméstico, o suporte de uma desorganização de ícones distribuída em investidas autobiográficas.
Em cooperação com a artista La Conga Rosa, Sosha e sua playlist conduzem cinema em que o direto se mantém, agora como aposta cênica, tomando como imediações a andança no território e, com a música, a devolução da concretude à visionagem. Filme e botas vermelhas seguem para desvendar portal em meio ao indício modernista e à anunciação nostálgica do matagal, instalando uma paisagem pública da dança como consequência de um road movie que arruína e restitui o que atravessa. GIF é um indício de que a filmografia de Sosha faz algo entre enciclopédia, duração e aparição a ser mais notadamente registrado pelas vogas da crítica.
E então o jogo com o termo, ainda direto, em Diga "queer" con la lengua afuera, para um estudo esquivo do referente, uma iluminação fugitiva da leitura. No filme do artista e pesquisador Felipe Rivas San Martín, a língua indicia uma recomposição semântica – crítica, sociológica – das práticas ao passo que a interrompe por meio do ato e de sua ostentação obscena, que desorienta objeto e abjeto. A palavra, quase palavra, é desvirtuada pela língua que baba, pela demonstração verbal da secreção. Com um músculo, o corpo devolve nova depravação ao conceito, a suspeita de uma dissidência a mais para o projeto.
E, assim, na demora das mediações, entre o que reconduzem, o que espalham, o que distinguem e o que interditam, alguns dos filmes se fazem numa exploração mais delongada das filmotecas do movimento. Pierre León, com seu Restos, reexamina e reexibe o corpo mesmo do Cinema, numa coleta compulsiva de gestos, obsediado pelos fazeres de Fritz Lang e suas mãos. Um exército de ferramentas, armas, canetas, isqueiros, maçanetas, vetores da ação romanesca, verbos de ligação na grande narrativa, é excomungado pelo terror da coisa, que arrisca o presente com nova duração, insaciável, de resquícios, para iniciativas vindouras e possíveis levantes.
Afinal, em A vida do fósforo não é bolinho, gatinho e Todos mentem, duas ficções se realizam da superfície da cinefilia à profundeza da tomada, da conversação em torno do cânone ao extrativismo encantado de ídolos, dos lazeres da arte aos prazeres da cena, enquanto riscam seus palitos de fósforo. O filme de Sergio Silva, em curta-metragem, desenvolve um enredo gostoso entre a afeição de arquétipos, a transcendência de narrações e a desilusão da história, que tem nas traduções filmáveis o fundamento de uma conglomeração de fantasias: perspectivas de nação e geração, sob boas e más maneiras, são devolvidas à magia como talento da cultura.
Enquanto no filme de Matías Piñeiro, em longa-metragem, a revisão da história do poder, local ou universal, é o ambiente para um acomunamento de continuidades entre aparências, posições e modos de fazer presença: o filme cita documentos para armar desmandos, assume verdades para proliferar segredos, planeja uma miríade de frivolidades, matéria prima das melhores relações, para delinear uma sociologia da colônia em que se indistinguem as forjas do pertencimento e as delícias e assombros de campo e extracampo. Num filme e no outro, os objetos passam de mão em mão, de boca em boca, de quadro em quadro, de fogo em fogo, como insígnias, aportes do desejo e lembranças da iminência.
El día que pudo ser
(O dia que pôde ser)
Lorena Moriconi, Santiago Loza, Argentina, 2016, 5'
Filme parte do projeto coletivo "Archivos Intervenidos: Cine Escuela", realizado com material do primeiro mandato de Juan Domingo Perón, acervo do Museo de Cine Pablo Ducrós Hicken.
The Harpy
(A Hárpia)
Sylvia Toy, EUA, 2016, 10'
Uma deusa acorda depois de 10 mil anos em coma. Episódio de série de experiências da artista com a mesma personagem.
A vida do fósforo não é bolinho, gatinho
Sergio Silva, Brasil, 2014, 29'
Marcos hospeda Robert em sua casa – e cai de amores por ele. Quando Michael Jackson morre, Marcos adoece e Lígia, sua irmã, vai ajudá-lo.
Remains
(Restos)
Pierre León, França, 2014, 20'
Algo nos leva ao subterrâneo, onde deuses e monstros estão em meio às ruínas de um mundo que movem com suas inúmeras mãos. Um sonho inspirado por Fritz Lang e Richard Wagner.
Melancolía
(Melancolia)
Albertina Carri, Argentina, 2016, 4'
Filme parte do projeto coletivo "Archivos Intervenidos: Cine Escuela", realizado com material do primeiro mandato de Juan Domingo Perón, acervo do Museo de Cine Pablo Ducrós Hicken.
Diga "queer" con la lengua afuera
Felipe Rivas San Martín, Chile, 2010, 3'
O projeto homônimo inclui este filme, um ensaio teórico e a série de pinturas Queer Codes. Aqui, a ação exibe o órgão obsceno e provoca uma "impronunciabilidade radical".
Todos mienten
(Todos mentem)
Matías Piñeiro, Argentina, 2009, 75'
Um grupo de jovens se isola em uma casa no campo. Um deles escreve um romance enquanto outros planejam um roubo; alguns se apaixonam, ou parecem, ou acreditam (ou dizem) estar apaixonados. Mas esses dois, três, dez enredos se desdobram do que os personagens escondem ou simplesmente não sabem. Seus passados e o da casa se conectam ao de inimigos da história nacional.
Amateur Baritone: His Debut, The Alabama Song
(Barítono amador: a estreia dele, The Alabama Song)
Sylvia Toy, EUA, 2016, 5'
Um cover da ópera alemã escrita em 1929 por Kurt Weill e Bertolt Brecht e que ganhou versão – sem a palavra "dólar" – pelo The Doors em 1967.
GIF
Sosha, Brasil, 2015, 10'
La Conga Rosa encontra vibes além do horizonte.
obrigado: realizadoras e realizadores, produtoras e produtores por disponibilizarem seus filmes, Clara Simas, Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba (por ceder as legendas de Todos mentem), Eugenia Castello, Francisco Lezama, João Marcos de Almeida, André Brasil, Maria Ines Dieuzeide, Paulo Faltay e Almir Rodrigues.
contato: luisfernandomoura@gmail.com